É só fumaça
ou o povo é sereno
Com a natural e mais que esperada queda do governo, parece que as ruas se encheram de multidões festejadoras. Bom, multidões é exagero. Aquilo era uma esquálida manifestação de quadros da CGTP que, à falta de imaginação gritava a plenos pulmões o estafado slogan “o povo unido jamais será vencido” de saudosa memória.
Já agora, dois reparos: a tradução ideal de jamás é nunca mesmo se o jamais não destoe inteiramente. Só que ninguém diz correntemente “jamais”. Ou melhor, houve um senhor ministro socialista do glorioso governo de Sócrates (o José e não o ateniense) que negava a hipóteses de um malfadado aeroporto ir para o sul do Tejo ululando em francês mal pronunciado “jamais”. Passou célere à história e confesso que nem do nome da criatura me lembro.
Recordo-me, todavia, do “povo unido jamais será vencido”, slogan crescentemente gritado no Chile enquanto a Esquerda ia fenecendo e a Direita arreganhava os dentes. Depois, foi o que se viu, um horror, um massacre que nem a patética aparição de Allende de capacete e metralhadora na mão pode esconjurar.
Como de costume, e por facilidade, toda a gente resolveu a coisa atirando para a militaragem todas as culpas. Que aqueles generais, coronéis, capitães, sargentos e soldados eram uns bandidos não duvido, bem pelo contrário. Que a Direita civil rejubilou e aproveitou é uma evidência. Que vários bem intencionados líderes da Esquerda deitaram azeite no lume, também não. No Chile, país considerado civilizado e constitucional, já houvera antes um forte ataque à Esquerda (e Neruda bem que se exilou) que deixara as suas marcas. Como de costume, a lição não foi aproveitada.
No entanto, o patético apelo à unidade do Povo que soou nas ruas das maiores cidades chilenas era desgarrador. Soava a queixa, a medo e destino. E foi.
Em Portugal, o do PREC de, pelos vistos, saudosa memória, também uma auto-intitulada Esquerda andou pelas ruas no mesmo rodopio, sonhando com a tomada do Palácio de Inverno e com a instauração de um qualquer ersatz do soviet. Alguns militares, tão tolos quanto ignorantes tomaram-se pelos marinheiros de Kronstadt antes deste ter sido subjugado por Trotsky. Outros viam-se como “comandantes en la Sierra Maestra” a tourear Baptista. Curiosamente não perceberam que tinham chegado tarde, que o Che já morrera e que Fidel era apenas mais um tiranete tropical.
Que, quarenta anos, depois o slogan volte à baila faz-me pensar que há gente que não esqueceu nada e que, também, nada aprendeu.
Com uma diferença: a história não se repete ou se isso acontece é sempre em tom de farsa, e no caso em apreço de revista à portuguesa no parque Mayer chungoso da nossa política doméstica.
Mas tudo isto não passa de mera fumaça. Razão tinha o tão, e tão injustamente, criticado Pinheiro de Azevedo.
Mas deixemos o slogan pobre antes que reapareça (e vai reaparecer, claro) “a gaivota que voava, voava...” e passemos à pérolas do mês:
Uma senhora promovida a governante resolveu escrever censura com s no início. Está no seu pleno direito à iliteracia e ao novo acordo ortográfico. Não vale é depois vir argumentar que é disléxica.
Outra, desta feita ex-governante, em vez de escrever “à Direita” entendeu que ficava melhor antepor-lhe um H (Há Direita.. aconteceu...). É sempre bom ver conjugar o verbo haver com leveza, liberdade e estilo mas, pergunto-me, que mal é que os verbos fizeram à criatura que lança tais canas ao ar (ou será “lansa” hao har?)
Um cavalheiro que prova à evidência que não basta ser filho de alguém para também se ser alguém, que ficou conhecido por presidir no longe do tempo a uma anedota chamada “grupo autónomo do partido socialista” (autónomo de quê, porquê, como e para quê?) que conseguiu perder uma Câmara que só por engano popular ganhara e que finalmente, se envolveu e indirectamente envolveu Portugal no atoleiro da guerra civil angolana ao tomar partido por Jonas Savimbi, ex-colaborador do exército português, foi à (ou há?) TV dizer meia dúzia de banalidades confrangedoras. Dentre elas esta “O caminho faz-se caminhando como dizia um brasileiro”. Conviria explicar a este novo luminar da cultura pátria que tal citação remete directamente para António Machado, poeta espanhol, republicano e democrata morto no exílio depois de abandonar, velho e doente, Espanha.
A menos que quisesse citar Carlos Drumond de Andrade, esse sim brasileiro, que deixou o famoso “no meio do caminho tinha uma pedra...” se bem que me custe acreditar em tanto conhecimento poético.
Pelo rolar da carruagem temo bem que a criatura se estatele no meio do caminho que se propõe andar. Convenhamos que seria uma vingança poética extraordinária.
Apetecia-me terminar citando alguém que ao longo destes anos todos nunca se coibiu de falar, comentar, aconselhar, criticar e aparecer. Há mais de um mês que guarda um silêncio tumular. Como se tivesse morrido ou, pior, que estivesse tolhido por qualquer misteriosa razão. E para mistérios já nos bastam os do rosário que serão vinte entre dolorosos, gozosos, luminosos e já não sei que mais...
Ámen!
Laus Deo!
Três mortes
Morreram subitamente, ou quase, três pessoas pr quem sentia respeito, estima ou consideração. Comecemos por Helmut Schmidt, ex-chanceler alemão e destacado dirigente socialista. Schmidt, afastado do poder há muito, marcou uma época de grande criatividade para a Alemanha e foi (como Brandt, Adenauer ou Kohl) um dos maiores dirigentes da Alemanha, um europeísta convicto, um defensor da paz e um intelectual brilhante. Não pode esquecer-se o seu papel como editor de Der Spiegel, uma revista semanal obrigatória para quem quer sair do acanhado campo daa imprensa nacional.
André Glucksmann, um velho conhecido meu dos tempos em frequentei a “gauche proletarienne”, tinha uma obra notável no campo do ensaísmo político e outra, mais notável ainda, na luta pelos Direitos Humanos. Muitas vezes foi apenas uma voz solitária a bradar no deserto mas sem ele, provavelmente, Sartre e Aron (sobretudo o primeiro) não se teriam empenhado na defesa dos “boat people” vietnamitas. Não foi o seu único cmbate mas foi talvez o mais mediático e o mais incómodo. Para muita gente (eu incluído) que tinha feito a propaganda da insurreição-guerra civil contra o regime corrupto de Saigão, foi doloroso e dramático verificar que, com o fim da guerra, começara uma desenfreada e medonha perseguição de milhões de pessoas cujo único crime era serem suspeitos de um presumível, embora improvável dadas as circunstâncias, não-alinhamento com a ortodoxia de Hanoi. Longe vão esses tempos agora tão desmentidos na prática pela política vietnamita! Glucksmann empenhou-se igualmente na denúncia do gulag, um sistema monstruoso que, por cá, ainda não foi alvo de qualquer reflexão pelos intelectuais e políticos do partido irmão do PCUS de horrenda memória. Feitios!
Como autor, AG deixou-nos quatro ou cinco textos de grande qualidade e impacto. Pessoalmente, recordo o primeiro que li “Devant la guerre” mesmo se deva reconhecer a enorme importância de “La cuisinière et le mangeur d’hommes”. E nunca esquecerei a qualidade das suas intervenções na televisãoo em especial no famoso programa de Bernard Pivot , “Apostrophes” (e eventualmente também –já não distingo- no Bouillon de culture do mesmíssimo Pivot.) Não estive sempre de acordo com ele, nomeadamente quando entendeu apoiar Sarkozy mesmo que lhe reconheça alguma razão circunstancial. De todo o modo, aquilo foi sol de pouca dura e Glucksmann viveu ainda o tempo suficiente para mostrar que mantinha intactas a sua rigorosa liberdade e indignação.
Finalmente, Paulo Cunha e Silva, uma morte súbita que não permite avaliar bem o que seria a sua passagem pelo pelouro da cultura da Câmara do Porto. De todo o modo, PCS já se tornara notado pelo seu dinamismo cultural, pela sua capacidade de intervenção crítica e pela facilidade com que conseguia mobilizar intelectuais de diferentes campos e práticas num arriscado exercício de pensar em comum, a cidade e a sociedade.
Os leitores perdoarão que mais uma vez me atreva a insistir que é gente como esta e não a tropa fandanga subitamente revelada pela política atual que mostra o que uma Esquerda moderna e sem arcas encoiradas, sabe, pode e deve fazer.
De todo o modo, dizer isto é chover no molhado. As criaturas agora reunidas no saco de gatos que é a actual coligação governativa nunca devem ter pensado em Schmidt, lido Glucksmann ou percebido ( tentado percorrer) o itinerário de Cunha e Silva. A exigência ética, estética e política é pão que não consomem amiúde se é que alguma vez ouviram falar dele. É com eles Estrelinha que os guie!...
. o leitor (im)penitente 22...
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. o leitor (im)penitente 20...