Ao que se chegou
Num projecto de livro de Fisico-químicas um anormal que ultrapassa definitivamente o grau máximo de imbecilidade possível resolveu propor um problema em que uma criatura agarra num gato e o atira de uma altura dez vezes superior ao do bichano.
Que em 2015, se convide alguém com estes dotes morais e esta misericórdia felina já diz muito do que este país pode vir a ser: uma merda triste que tenta desesperadamente igualar-se a outras podridões estilo Exército Islâmico.
Já sei que me vão acusar de desproporcionalidade entre a tortura de um gato indefeso que há milénios acompanha o homem e a cabronagem assassina e infecta que mata tudo o que se mexe e não recite todas as suratas do Corão. Todavia, lamento informar que a aberração moral é exactamente igual e a pulsão homicida idem.
A besta que pensa um exercício com gatos a serem atirados ainda não matou um humano por simples pavor do castigo. É apenas, além de inqualificavelmente estúpido e mau, um cobarde.
Espera-se desanimadamente que os editores do livro não mais peçam ao mata-gatos qualquer livro, qualquer trabalho, qualquer conselho já que não há seguramente hipótese de vir a conhecer o nome da miserável criatura.
Como água destilada
Se ainda me lembro dos tempos da escola primária de Buarcos, havia uma água quimicamente pura que era inodora, insípida e incolor. É uma água “fabricada” já não sei para que fins que não sejam as baterias dos automóveis. E as baterias, em si, são pouco, quase nada, mesmo, se sem elas, o veículo não ande.
Ora esta imagem antiga dessa água sem préstimo para quem tem sede, sem utilidade para quem quer lavar-se, desconhecida na natureza pelo nem para um mergulho refrescante dá, lembra-me irresistivelmente a candidatura do senhor Professor Doutor Sampaio da Nóvoa.
Não tenho qualquer dúvida que se tratará de um cavalheiro com imensas qualidades morais, um profissional sério, um cidadão escrupuloso que pagará atempadamente os seus impostos, dará lugar no autocarro a senhoras e a pessoas com algum problema físico.
Também não duvido que, no seu circulo de amigos, com a família ou com algum colega, o referido senhor terá opinado sobre a política nacional ou internacional, máxime sobre as tricas locais lisboetas ou, enfim, os formidáveis problemas da educação nacional.
Finalmente, sei bem que, legalmente, pouco é preciso para um cidadão português se candidatar a Presidente da República. Se tiver a idade necessária, souber ler e escrever (o que não é assim tão fácil) e houver uns milhares de cidadãos que atestem confiar nele para tão alta tarefa, qualquer quiddam pode apresentar-se à sociedade e proclamar o seu absoluto amor à pátria, a sua vontade de devotamente servir os portugueses e o país e a sua aceitação de viver naquele horrendo palácio nos arredores dos pastéis de Belém.
Todavia, vá lá saber-se porquê, entre nós, o cargo tem assumido uma importância de proporções inimagináveis. Nem o Dr Soares, a cavalgar nobremente uma tartaruga, ou Professor Doutor Cavaco Silva a trepar virilmente um coqueiro, conseguiram deitar abaixo o mito do “Presidente”. Já nos tempos da velha Senhora, o sr almirante Américo Thomaz (assim mesmo) não conseguia, com os seus extraordinários discursos e o embaraçoso olhar baixo com que caminhava (por isso lhe chamaram “Mira carpetes”), derrubar o respeito com que se encarava o “Venerando” Chefe de Estado.
Por junto, e que me lembre, só uma vez um grupo de rapazolas “mal educados” e manejados “por ínvios interesses” se atreveram, em Coimbra, no malfadado ano de 1969 e no dia 17 de Abril, a brindar S.ª Ex.ª com uma surriada.
Disso me penitencio suavemente, tantos anos depois. Ou nem por isso, convenhamos. Canhoto de natureza e de vocação, confesso que, na altura, a coisa me seduziu e me levou a colaborar no incidente. Paguei o atrevimento com uns largos tempos de masmorra nos cafundós do Palácio da Justiça de Coimbra, às ordens de um juiz de instrução ao serviço da PJ, alegremente denunciado (em todos os vinte e tal volumes do processo organizado pelas autoridades) por vários rapazes que tinham mais garganta que estofo para aguentar uma escassa semana de prisão... Vê-se (ou via-se...) que o “Se fores preso camarada...” podia ser lido mas, regra geral, não era aplicado.
Mas tudo isto me desviou do acontecimento do mês: a anunciada candidatura do senhor Pr. Dr. Sampaio da Nóvoa.
Um grupo de amigas que se reúnem quase diariamente numa esplanada lisboeta que, de longe em longe, me acolhem amavelmente já me tinha prevenido quanto à emergência da criatura. Sempre atrevidas, sempre esperançadas, todas elas tinham acorrido às varias reuniões, convenções, sessões onde as mesmas pequenas multidões se davam ao gozoso mistério de provocar o inerme Governo da pátria naufragada. Foram elas as primeiras a comentar, jocosa e impudentemente, as ambições da personagem Nóvoa.
Embora eu tenha ficado com a impressão que elas não levavam muito a sério o senhor ex-reitor, a verdade é que me despertaram a atenção. Tentei afincadamente recordar a criatura que, pensava eu, havia de ter feito algo durante estes últimos quarenta anos para entrar assim na nebulosa dos candidatos à Presidência da República. Esta função não é uma espécie de moinho da Joana onde entra quem quer, que diabo! Pese embora ao agora desempregado dr Alberto João, isto ainda não é exactamente uma república bananeira mesmo se para lá pareçamos caminhar.
Convém, penso, que os candidatos à (assim chamada) mais alta magistratura tenham um pingo de passado, de biografia política, de reconhecimento público da sua intervenção cívica e política.
Ora, o doutor (por extenso) Sampaio da Nóvoa é, nestes meios, um absoluto desconhecido. E é-o de tal forma, que ainda há bem pouco, um dos seus auto-proclamados capatazes políticos veio à televisão dizer isso mesmo em tom de desafio, elogiando a especial virgindade política do cavalheiro em causa como uma virtude.
Eu, sobre virgindades, basto-me com a frase célebre de um doutor da Igreja ou algo do mesmo género e espécie, que durante a grande polémica medieval sobre a virgindade de Maria, afirmava que esta “fora virgem antes, durante e depois do parto de Jesus”!
Ora, que se saiba, o candidato SN não é a Senhora de Fátima nem mesmo aquela vaga “santinha da ladeira” que há um par de anos amotinou umas centenas de curiosos proclamando-se vidente (e virgem, claro). O Dr Nóvoa gasta barba bem aparada e tem todo o ar de já ter experimentado as delícias do sexo. Ainda bem para ele, aliás, que, ao menos nesse ponto, conhece alguma realidade portuguesa.
Todavia, sufoca-me uma pergunta: como é que três dos ex-Presidentes da República (aliás os únicos ainda vivos) se juntam quais três reis magos à cabeceira do candidato, na hora do seu nascimento político? Não são só eles, claro, nem sei se a eles cabe a tarefa de trazer o oiro, o incenso e a mirra, pois no quadro idílico de Belém ainda faltam umas quantas personagens entre os quais o casal parental, o burro e a vaquinha. Só depois de se encontrarem quatro criaturas presentes no momento do primeiro vagido é que se distribuirão definitivamente os papéis a cada um.
Entretanto, vejamos o que unirá estas três criaturas (Sampaio, Eanes e Soares) e o que unirá o trio a SN. Não o sangue político porquanto Nóvoa quanto a esse elemento líquido parece mais predisposto a trazer na circulação uma espécie desbotada de salsaparrilha, coisa muito indicada para a infância mas absolutamente deslocada na arena política. Muito menos a prática política porquanto Eanes só nasceu para a política em Novembro de 75 enquanto os outros dois aprenderam logo nos primeiros anos de faculdade o quanto doíam as bastonadas da polícia. Os moços Jorge e Mário eram já civis, paisanos sem remédio, enquanto o austero António fazia a aprendizagem das armas. Dir-se-ia (agora é fácil afirmá-lo) que Soares e Sampaio estavam predestinados a um lugar na República enquanto o militar, porventura devido à reserva que se impõe à “grande muette”, apenas sonharia com um eventual generalato.
Eppure... , eis que os três, quais fadas madrinhas, se encontram, como velhos mosqueteiros, a guardar as costas de Nóvoa. Entretanto o “afilhado” vai dedilhando umas vagas modinhas em que ressoam, murchos, alguns versos de Sofia, duas trovas de José Afonso ou Sérgio Godinho. Como esteio intelectual, mesmo que as referências mereçam respeito, a coisa cheira a pouco, a fabricado, a nariz de cera, a lugar comum. Citar três ícones democráticos pode apenas ser mais uma conta do rosário maquinal com que se começam as novenas de Maio. Nada mais.
Depois, Nóvoa, sempre no campeonato do já ouvido, afirma coisas tremendas como se em vez de Presidente da República se estivesse a candidatar a Primeiro Ministro. Bem sei que, ainda em tempos de Cavaco Silva, dá jeito arrear no actual PR que leva o seu papel a um escasso intervencionismo. Todavia, Cavaco vai embora daqui a meses (que vão parecer anos...) e não está em liça com Nóvoa. E ainda bem para este, porquanto, no que toca a políticas primeiro-ministeriais, Cavaco poderia ensinar-lhe mais do que alguma vez ele aprenderá.
Eu estou em crer que alguém anda por aí a pregar partidas aos portugueses. Já agora, terá pensado, porque não vender-lhes um PR inteiramente saído do nada?
Do nada político, entenda-se. É que Sampaio ou Soares, aos vinte anos, já tinham feito mais política do que Nóvoa aos sessenta.
Retiremos pois estes dois de cena e fiquemos com Eanes. Em que é que Nóvoa se lhe aparentará? Tudo parece separá-los mesmo se, a proto-candidatura de SN pareça vir nimbada de sebastianismo (outra velha pecha nacional) e que, nesse campo, se possa recordar a famosa cruzada feita em nome de Eanes para criar um novo partido e depois uma nova política. Dessa aventura pouco exaltante, restam algumas anedotas, alguns fracassos, muitos órfãos políticos e a memorável campanha da drª Manuela Eanes que percorreu o país como uma espécie doméstica e comezinha de Dolores Ibarruri urbana que maternalmente falasse o povo miúdo e ordeiro. Felizmente, a senhora deixou cair essa faceta comicieira e agora faz excelente trabalho no amparo às crianças. Talvez seja este o único aspecto positivo da operação “renovadora”.
Sampaio da Nóvoa, extraído dos nevoeiros de Alcácer Quibir, ou da Troikaland, como salvador da pátria? Mesmo com todos os defeitos que temos, e são muitos, acho que não merecemos tal sorte.
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. o leitor (im)penitente 21...
. o leitor (im)penitente 22...
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